Las Cartas a Spinoza de Nise da Silveira, constituyen un
horizonte de escritura íntima, donde Silveira escribe a Spinoza escribiéndose a
sí misma. Nise en Spinoza, Spinoza en Nise, expresa una escritura singular que
saca a luz la autenticidad de una apropiación, de una lectura hecha
experiencia. No se trata de una filosofa o psiquiatra leyendo a Spinoza: un
neutro lector que en la figura del sujeto lee un objeto, sino, de una
experiencia de vida que potenciada, animada y vitalizada rinde tributo a
aquello que la alimenta, la potencia, que la atraviesa y seduce. Nise Da
Silveira (Maceió, 15 de febrero de 1905 — Rio de Janeiro, 30 de octubre de
1999), memorable expresión femenina que alteró las relaciones en que ese cuerpo
social nombrado Brasil devino en el pasado siglo. Ella se hizo historia, se
forjó a sí misma como un jardín de expresiones artísticas, políticas,
psiquiátricas y éticas del que hoy se abastecen innumerables pensadores. A
continuación, un dialogo, una conversación entre maneras de ser del mundo, de
la Sustancia.
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As
cartas de Nise da Silveira a Spinoza
(Primeras dos cartas de siete escritas por Nise Da Silveira)
Silveira, N. da (1995). Cartas a Spinoza. Rio de
Janeiro: Francisco Alves.
CARTA
I
Meu
caro Spinoza,
Você
é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações
fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos
filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do
saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação
filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia.
Mais
surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se
sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se,
entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”. Dedica-lhe poemas. O poema
para A Ética de Spinoza transborda de afeto: “Como eu amo este homem nobre / mais
do que posso dizer por palavras”.
E
este belo soneto de Sully Prud’homme exprime sentimentos de terna devoção:
C’était un homme
doux, de chétive santé
Qui, tout en
polissant de verres des lunettes,
Mit l’essence
divine en formules très nettes,
Si nettes, que
le monde em fut épouvanté,
Ce sage
demonstrait, avec simplicité.
Que le bien et
te mal sont d’antiques sornettes,
Et les libres
mortels d’humbles marionettes,
Dont le fil est
aux mains de la necessité.
Pieux admirateur
de la Sainte Ecriture
Il n’y voulait
pas voir un Dieu contre nature,
A quoi la
Synagogue en rage s’opposa.
Loin d’elle
polissant des verres des lunettes,
Il aidait les
savants à compter les planètes,
C’était un homme
doux Baruch de Spinoza.
[Era um homem
tão doce, de saúde frágil,
Que de tanto
polir os cristais de mil lentes,
Pôs a essência
divina numa fórmula ágil,
E o mundo
apavorado o viu como um descrente.
O sábio
demonstrou com um simples adágio
Que tanto o bem
quanto o mal são velhos dementes,
E os mortais são
fantoches que devem seu ágio
Aos fios
necessários de mãos descontentes.
Admirador devoto
da Santa Escritura,
Não poderia ver
um Deus contra a natura,
Ao qual a
sinagoga se opunha raivosa.
Longe dela,
polia os cristais de mil lentes,
E socorria os
sábios contando astros e entes.
Era um homem tão
doce, Bento de Espinosa.]*
*Trad.:
João Filho
Talvez você se
surpreenda em saber que o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, escreveu
para você um soneto:
Gosto de ver-te
grave e solitário
sob o fumo de
esquálida candeia,
nas mãos a
ferramenta de operário,
e na cabeça a
coruscante ideia.
E enquanto o
pensamento delineia
uma filosofia, o
pão diário
a tua mão a
labutar granjeia
e achas na
independência o teu salário.
Soem, lá fora
agitações e lutas
sibile o bafo
aspérrimo do inverno,
tu trabalhas, tu
pensas, e executas
sóbrio,
tranquilo, desvelado e terno
a lei comum, e
morres, e transmutas
o suado labor no
prémio eterno.
E até um mestre
budista, Maida Schiuchi, também escreveu versos para você:
Goethe foi
budista
Por quê?
Porque ele
serviu
um Buda chamada
Spinoza.
Quem não for
capaz de ler A Ética
como um sutra do
Grande Veículo,
ainda que se
diga budista
não passa de uma
toupeira.
Buda viveu há
2.500 anos.
E Spinoza, há
300.
Realmente a
verdade é uma só!
É a universidade
do Budismo.
Aquele homem
num cantinho de
sua cidade
viveu como
artesão polidor de lentes,
viveu
autenticamente a Verdade!
Não
sei de filósofo algum a quem tenham sido dedicadas poesias ou comovidas
evocações de encontros decisivos. Há, naturalmente, os eruditos, e esta é a
maioria, os conhecedores e interpretadores de sua obra, olhada de ângulos
diversos. A esses nada acontece de realmente importante. Mas há, também, outros
que você marcou no cerne do ser.
Goethe
permaneceu em reclusão durante meses para estudar a Ética e, a partir daí,
passou por um processo de transformação. “Na Ética de Spinoza encontrei
apaziguamento para minhas paixões; pareceu-me que se abria ante meus olhos uma
visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral. A imagem deste mundo é
transitória; desejaria ocupar-me somente das coisas duradouras e conseguir a
eternidade para meu espírito, de acordo com a doutrina de Spinoza”.
Deu-me
prazer a narração que faz Romain Roland do encontro com você, quando ainda
adolescente. Ele vinha sendo, como bom francês, “nourri de la moelle
cartesienne, pendant deux à trois années”… [mantido à medula cartesiana durante
dois ou três anos] Mas, continua ele, o caminho natural do espírito levou-me a
Spinoza, diretamente, instintivamente, tal um cão pelo olfato na trilha de duas
ou três palavras. E diz da intensa emoção sentida quando leu seus escritos.
Muitos anos depois, os volumes que os continham permaneceram para ele “livros
sagrados”.
E
assim, através do tempo e dos lugares, você foi fascinando grandes, pequenos, pequeníssimos.
E, correndo mundo, seu Livro maior — a Ética — chegou às minhas mãos, numa
pequena cidade do nordeste do Brasil, chamada Maceió. Parece incrível. Eu
estava vivendo um período de muito sofrimento e contradições. Logo às primeiras
páginas, fui atingida. As dez mil coisas que me inquietavam dissiparam-se
quase, enfraquecendo-se a importância que eu lhes atribuía. Outros valores
impunham-se agora. Continuei sofrendo, mas de uma maneira diferente. E desde
então, desejo intensamente aproximar-me de você, como discípula e amiga. Este é
o motivo por que lhe escrevo essas cartas.
Tenho
para mim que você vivenciou de súbito a experiência da totalidade, “a mais
importante e única de todas as experiências espirituais”.
Mas
como exprimir em palavras algo tão assombroso?
Então
você nos fala de uma substância única, cujo conceito não necessita de qualquer
outra coisa para sua formulação. E aquilo que é, ou seja, Deus, ser
absolutamente infinito, enfeixando infinidade de atributos, cada um dos quais
exprime uma essência eterna e infinita.
Todas
as coisas existentes são modos, isto é, modificações, afecções da substância, e
não podem ser concebidas sem a substância ou fora da substância, sua causa
imanente. A existência dos modos é precária. Existem ou deixam de existir,
enquanto é eterna a substância.
Os
humanos seriam modos. Mas me parece que, pelo menos a estes modos, os humanos,
você concede uma latente capacidade de diferenciação e esforça-se, através de
toda a Ética, para ajudá-los a se diferenciarem de maneira especial, reformando
o entendimento, trabalhando ideias confusas, a fim de torná-las claras,
indicando-lhes o caminho para libertarem-se da escravidão das paixões e mesmo
atingirem a beatitude. Esta arte de diferenciação, que você propõe, chega ao ponto
de admitir a possibilidade de um modo, perecível por definição, saltar, graças
a assíduo trabalho, de sua instável condição de existência para conquistar a
eternidade. Seria um verdadeiro pulo olímpico. Ouso até propor para seu livro
magnum o subtítulo: “Arte de diferenciação do modo humano”. Estarei dizendo um
absurdo?
A
concepção que você tem de Deus, causa imanente e não transitiva de todas as
coisas, confundiu muita gente. Insultos pessoais, deturpações grosseiras de
suas concepções, rótulos de panteísta, de ateu. Ateu, você, para quem “o amor
devotado a Deus deve ocupar o espírito acima de tudo” (V, XVI), amor
completamente depurado, que nada pede em troca, sequer o amor do grande amado
(V, XIX).
Quanto
a mim, repito com Novallis, que você é “um homem ébrio de Deus”.
Outros
negam-lhe originalidade. Referem influências sobre seu pensamento, partindo de
Uriel da Costa, Daniel Prado, Giordano Bruno…
Decerto,
todos sofrem a influência da época em que vivem. Seu vocabulário bem o
demonstra para desespero de seus leitores de hoje. Mas, essas influências, por
fortes que sejam, podem contribuir para modelamentos de formas e expressão.
Entretanto jamais conseguiriam provocar profundas transformações da visão do
universo, segundo aconteceu a você.
Em
compensação, outros lhe compreenderam, no todo ou em parte, admiravam e
escreveram livros e mais livros sobre a sua filosofia. Quero apenas perguntar
se você tem notícia de um filósofo do Terceiro Mundo, chamado Farias Brito. Ele
aprendeu sua ideia fundamental de maneira mais sintética: “Deus está no
universo como o universo está em Deus”. Farias Brito vê em você um pensador
isolado. Escreve: “sua filosofia apresenta-se na história do pensamento com a
mesma importância com que se apresentaria em vasto deserto uma grande montanha
de cristal dominando o alto e na qual bateriam em cheio os raios de sol”.
Agora
vou continuar, entrando num assunto difícil. Talvez tenham ocorrido, para abrir
caminho à sua grande vivência original, circunstâncias especiais de sua vida:
—
Você não aceitou, desde ainda muito jovem, os rígidos ensinamentos dos mestres
do judaísmo e foi, por isso, expulso da comunidade judaica como um maldito.
—
Suas tentativas de atividade no comércio de exportação, legado por seu pai,
fracassaram.
—
E, mais ainda, o amor pela filha de seu professor de latim trouxe-lhe amarga
decepção.
Perdoe-me
se toco em assuntos pessoais delicados. Receio aborrecer você, sempre tão
discreto. Mas se o faço é movida por um desejo de o conhecer melhor. Creio que
me encanta a imagem que você escolheu para seu sinete: uma rosa e, em torno da
flor, as palavras — Cuidado. Eu tenho espinhos. Não seriam certamente espinhos
para ferir, mas espinhos para manter à distância indiscretos que pretendessem
aproximação impertinente.
Haviam
sido cortadas todas as amarras, nenhum apego lhe retinha. Você estava livre
para receber, em todo o seu esplendor, a emergência da experiência interna da
totalidade e, a partir daí, desdobrá-la numa visão unitária do universo, que
acredito ter sido vivenciada por você, a ponto de ousar pedir-lhe permissão
para abordá-la usando conceitos e vocabulário que me são familiares.
Um
concurso de circunstâncias adversas, aceitas por você sem qualquer crispação do
Ego, criaram um vazio que permitiu o surgimento da profundidade da psique, do
arquétipo do Self — “um termo de uma parte bastante preciso para exprimir a
essência da totalidade humana e bastante impreciso, de outra parte, para
exprimir também o caráter indescritível e indeterminável da totalidade” (C. G.
Jung, 12, 10).
Ao
arquétipo do Self, no seu caráter indeterminado, você teria denominado
substância infinita, ou seja, Deus. Deus na acepção de Natura Naturans, energia
criadora e englobante do mundo na sua totalidade.
Muitos
filósofos devem ter pressentido e aspirado a este encontro com o arquétipo do
Self. Na Expérience Métaphysique, Jean Wahl diz que os grandes filósofos
intuíram mais ou menos vagamente a existência de algo para além de si próprios
e tentaram exprimir e alcançar este algo por caminhos diversos.
“Em
Spinoza, a visão intelectual do universo apresenta-se de um só golpe quase
perfeita”, escreveu Karl Jaspers.
Também
aqui aconteceu que muitos poderão ser chamados e poucos os escolhidos.
Uma
coisa me perturba e quase me causa vertigens: é a sua afirmação de que Deus
consiste de uma infinidade de atributos, dos quais o entendimento humano apenas
alcança dois — pensamento e extensão. Teremos, pois, de reconhecer as
limitações de nosso entendimento, na condição de modos da substância infinita.
Em carta a Oldenburg (XXXII), você compara o homem a um verme que vivesse no
sangue. Este verme poderia discernir os glóbulos do sangue em circulação
constante, mas não conheceria a natureza do sangue na sua totalidade.
Assim
vivemos nós numa parte do universo. Poderemos realizar pesquisas em torno de
nós e em nós mesmos, mas não alcançaremos a compreensão da natureza infinita,
pois somos finitos.
Conhecer
as limitações para então tentar superá-las, eis o belo itinerário que você nos
aponta.
Gratíssima,
mestre!
Nise.
________________________________________
CARTA
II
Meu
caro Spinoza,
A
vida em Amsterdã, depois da absurda excomunhão e de outros dissabores, devia
ter sido bastante penosa para você, apesar da acolhida que desde logo lhe
ofereceram os Colegiantes, esse curioso grupo de cristãos, que reunia
indivíduos interessados na interpretação da Bíblia, estudiosos de filosofia
cartesiana, e ainda outros, abertos a fontes neoplatônicas e a obras de
místicos como Jacob Boehme.
Foi
no círculo dos Colegiantes de Amsterdã que você encontrou ambiente para expor
suas ideias sob a forma ousada em que já se apresentavam no esboço do Breve
Tratado, fonte onde eu gosto muito de beber.
Mas
creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterdã quando você,
em 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijinsburg, centro dos Colegiantes.
Ali você estaria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial.
Às
vezes chego a imaginar-me em Rijinsburg, invisível ouvinte do círculo dos
Colegiantes, que você ali frequentava. Era um prazer vê-lo, aos 28 anos,
moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam ser semelhantes aos
de sua mãe, a portuguesa Ana Débora. Tenho quase certeza de que as primeiras
palavras que você balbuciou foram em português. E isso me comove.
Ali
estava você, no meio de homens louros ou ruivos, que o escutavam surpreendidos
e talvez mesmo perturbados. Essas minhas imaginações o acompanham até o frio
sótão, onde você habitava num quarto alugado. Parece-me vê-lo debruçado sobre
sua mesa de trabalho, iluminada por lâmpada de luz hesitante, trabalhando e
retrabalhando pensamentos e sentimentos nascidos de sua experiência direta da
unidade.
Lembrei-me
então desses versos de Baudelaire, embora fossem tranquilas as ruas de
Rijinsburg e só fosse ouvido o sopro de ventanias frígidas:
“L’émeute
tempêtant vainement à ma vitre
ne fera pas
lever mon front de mon pupitre,
car je serai
plongé dans cette volupté,
d’évoquer le
printemps avec ma volonté
de tirer un
soleil de mon coeur, et de faire
des mes pensées
brûlantes une tiède atmosphère”
[Em vão a
tempestade estremece a vidraça;
Imerso no poema
eu até acho graça
Pois cá na
escrivaninha revivo o prazer
De evocar o
Verão pelo simples querer
E produzir um
sol no meu coração. Rindo,
Minha mente febril
inventa um dia lindo.]*
*Trad.: Pontual.
Caraterística
muito simpática dos Colegiantes é nunca haverem exigido de você a adesão ao
cristianismo, ao batismo, nem que você aceitasse a encarnação do Deus infinito
num homem.
Mas
não deixa de surpreender você admitir que “Pode ser que Deus tenha impresso em
vós uma ideia clara d’Ele mesmo, de modo que, por amor, vós esqueceis o mundo e
amais os outros homens como a vós mesmos. Em todo caso, é evidente que a um
homem dotado de tal disposição repugne tudo quanto é chamado de mal e, por esta
razão, o mal não pode existir n’Ele” (Carta XXIII a Blyenbergh — Voorburg 1665
— O.C., p. 1220).
Esse
homem bem poderia ser o Cristo. E talvez algo semelhante haja acontecido a
outros raros seres humanos. Muito provavelmente a você, querido amigo.
É
inegável que a doutrina de Cristo tenha marcado seu pensamento, principalmente
na primeira etapa de suas cogitações filosóficas. Assim, na introdução do Breve
Tratado, você diz que visa a “curar aqueles que se acham doentes em seu entendimento
por meio de um espírito de doçura e paciência, segundo o exemplo do Senhor
Cristo, nosso mestre maior” (O.C., 71). E, bem mais tarde, no Tratado Teológico
Político, publicado em 1670, você escreve: “Eu não li em lugar algum que Deus
tenha aparecido ao Cristo, ou que lhe tenha falado, mas o texto ensina que Deus
se revelou aos apóstolos pela intermediação do Cristo e que Ele é a via da
salvação, ao passo que a Lei antiga havia sido transmitida por uma voz ecoando
no ar, mas não imediatamente… Por conseguinte, se Moisés falava face à face com
Deus, como um homem com seu semelhante (isto é, pela interposição de seus
corpos), o Cristo, ele próprio, comunicou-se com Deus de espírito a espírito.
Em
conclusão, nós declaramos que, à exceção do Cristo, ninguém recebeu jamais a
revelação de Deus sem o auxílio da imaginação, isto é, de palavras ou imagens
visuais” (T.T.P., O.C., 681).
Gostei
muito de ler essas suas palavras, porque sou muito amarrada ao Cristo. Peço-lhe
perdão por tê-las transcrito tão longamente numa carta a você mesmo. Mas isso
me deu prazer.
Entre
os Colegiantes de Rijinsburg, como já havia acontecido no grupo de Amsterdã,
você fez grandes amigos. Uma carta de Simon de Vries (Carta VIII) bem demonstra
o contato mantido entre os dois grupos. Além de Simon de Vries, outro amigo
delicadíssimo foi Jarig Jelles, firme até a morte. E ainda o editor Juan de
Rieuwertz, Balleing, para não citar outros. Você, que tanto amava a solidão, a
meditação, tinha o dom de fazer amizades sólidas. Insisto nisso porque é coisa
rara. Quase sempre as amizades são instáveis e deixam na gente traços de mágoa.
Pergunto-me mesmo, se, entre os mais fiéis de seus amigos, todos entendiam a
profundeza de sua filosofia. Não tenho dúvida de que sua personalidade, sua
atitude para com o outro, irradiassem algo como a força do ímã, vinda do âmago
de seu ser.
Você
polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofício, como
meio de manter a vida. Mas outros o negam. Sua subsistência modesta estava
assegurada por amigos fraternos (Vries). As lentes eram polidas a fim de serem
utilizadas em seus próprios trabalhos científicos, tal como faziam vários
sábios da época. É possível que algumas fossem vendidas, pois seriam procuradas
por sua perfeição, mas não como meio de subsistência. Aqui faço uma hipótese. O
polir lentes obedece a leis geométricas. Você as polia com prazer, usando as
próprias mãos. Divertiu-me o que você diz, em carta a Oldenburg, a propósito
das lentes polidas por Huygens que “se dedicou e se dedica inteiramente ao
polimento das lentes; em vista disso, ele construiu uma bela máquina para a
fabricação de várias lentes. Eu não sei ainda quais tenham sido os resultados,
e, com efeito, nem sequer me interesso. A experiência, em verdade, mostrou-me
suficientemente que com a mão é possível polir as lentes esféricas muito melhor
e com maior segurança do que lograria uma máquina” (Carta XXXII, Voorburg,
1665).
Você
admitiria a possibilidade de existir uma relação estreita entre o polir de
lentes, com as próprias mãos, dentro de regras geométricas, e as transformações
que fizeram do Breve Tratado, iniciado em Amsterdã — a Ética — construída sob
forma geométrica, sem cessar, polida e repolida, até 1775?
Nosso
Machado de Assis percebeu algo dessa relação quando disse num soneto, que já
citei na carta anterior: “nas mãos a ferramenta do operário / no cérebro a
coruscante ideia”.
Dando
um passo a mais, ver-se-á ficar transparente, em você próprio, relação estreita
entre pensamento e corpo (suas mãos) trabalhando, cada um em sua clave, numa
personalidade bem integrada.
Foi
no retiro de Rijinsburg que você escreveu o Tratado sobre a Reforma do
Entendimento. Desejei muito este seu livro, mas só consegui anos depois de já
ter comigo a Ética. Assim, foi uma grande alegria quando o encontrei. Nas
primeiras páginas fiquei logo comovida lendo o que você diz de si próprio, de
maneira tão discreta, mas que deixa transparecer um sofrido e profundo trabalho
interior.
Sem
maior demora, segue-se a exposição de seu método de filosofar, tão ligado à sua
maneira de viver.
Amigo,
você nem avalia a onda de lembranças que logo se ergueu dentro de mim.
Revi-me
quando ainda ginasiana. Depois de prestados meus exames de álgebra e geometria
no Liceu Alagoano (Maceió), logo no início das férias, eu estava um dia
arrumando meus livros: separei os volumes de álgebra, geometria e cadernos
correspondentes, guardei-os num armário próximo de minha pequena mesa de estudo
(era linda essa pequena mesa com seus elegantes pés volteados), e coloquei sobre
ela livros de física, química e história natural, que seriam as matérias no ano
letivo seguinte, de acordo com os programas daquela época.
Meu
pai estava perto, sentado numa cadeira de balanço. Parecia totalmente absorvido
na sua leitura.
Foi
com surpresa que o ouvi perguntar-me:
—
Você vai recolher seus livros de geometria?
—
Sim, agora terei outras matérias para estudar.
—
Lamento, porque geometria não é uma matéria como as outras. Não é apenas o
estudo das propriedades das figuras. Ensina a arte de pensar.
Meu
pai, em poucas palavras, mostrava-me uma perspectiva nova de estudo. Eu tinha
na ocasião quatorze anos de idade, mas me feriu a expressão “arte de pensar”.
Peguei
logo meu preferido tratado de geometria e coloquei-o ao lado dos livros
programados para o último ano de preparatórios, conforme se dizia naqueles
distantes tempos. Levei-o também comigo para a Bahia, onde fui fazer o curso
médico.
De
quando em vez, abria-o ao acaso e ficava seguindo linhas traçadas no espaço,
que conduziam sempre a demonstrações exatas. Assim, cedo tomei o hábito de
procurar ordenar e deduzir, embora não conseguisse chegar ao clássico “como
queríamos demonstrar” e esbarrasse tantas, tantas vezes, diante de portas
misteriosas. Nas ciências biológicas as coisas são muito complicadas.
Nessa
época eu estava longe de supor que meu pai havia me impulsionado para o segundo
gênero de conhecimento, conforme você o descreve: conhecimento dedutivo regido
pela razão, que deixa para trás o “ouvi dizer” ou as “experiências vagas” do primeiro
gênero de conhecimento.
Muito
mais tarde, quando comecei a estudar apaixonadamente sua filosofia, embora de
maneira dispersiva, verifiquei o quanto ainda mais difícil que a prática do
segundo gênero de conhecimento será a penetração para além da cadeia de
operações intelectuais dedutivas, até que se consiga atingir o terceiro gênero
de conhecimento, ou seja, a apreensão imediata da essência das coisas.
Foi
um relâmpago deste último género de conhecimento que deslumbrou Antonin Artaud,
quando ele de súbito descobriu o Ser da abelha: “j’ai vu un Être, celui de
l’abeille vivre, cela me suffitt pour toujours” [Eu vi o Ser da abelha, e isso
para mim foi definitivo].
Vivências
semelhantes já aconteceram a muitos outros: místicos, poetas, pintores, músicos
e mesmo a homens e mulheres comuns em instantes privilegiados, que parecem
eternos, mas quase sempre são fugazes.
Você
visa a transmitir a maneira de alcançar a essência das coisas com maior
estabilidade.
Para
galgar esta escalada, seu método ensina que será necessário, preliminarmente,
“uma meditação assídua e a maior firmeza de propósitos”, além de traçar uma
regra de vida e prescrever para si próprio um objetivo bem determinado (Carta
XXXVII, a J. Bauwmester).
O
pensamento deter-se-á sobre uma ideia verdadeira, pois “deve existir em nós,
como instrumento inato, uma ideia verdadeira”. Neste difícil caminhar, quanto
maior for o número de ideias verdadeiras, ou seja, das essências das coisas
existentes, compreendidas pela reflexão, mais se ampliará o espírito daquele
que pratica este método. E, sobretudo, acentua você, o método alcançará maior
perfeição quando o espírito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente
perfeito (Tratado da Reforma do Entendimento, 39). Desde o início, pois,
convirá dedicarmo-nos a chegar o mais rapidamente possível ao conhecimento
daquele Ser (49 TRE).
Não
sei se o entendo bem. Mas não consigo aceitar que você seja um extremado
racionalista, segundo se repete habitualmente.
Só
em Jaspers encontrei um justo comentário: “Spinoza comunica sua filosofia pelos
meios que a razão fornece, mas estes não esgotam seus fundamentos decisivos”
(Jaspers, op. cit., 276). Estes “fundamentos decisivos” provêm, parece-me, da
experiência da totalidade que você apreendeu intuitivamente como uma verdade
absoluta.
Perdoe-me
se comparo sua concepção da unidade original das coisas à visão do “planetário
de Deus”, vislumbrada por Carlos Pertuis. Mas Carlos era fraco. Sua
personalidade estilhaçou-se sob o impacto da visão extraordinária e acabou
internado, pelo resto da vida, num hospital psiquiátrico.
Você
suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experiência súbita, mas a estrutura
forte de sua personalidade manteve-se coesa. Mas a experiência direta era
inefável. Como falar aos homens? Seria preciso recorrer à linguagem racional.
Assim você o fez, desdobrando pensamentos, desvelando paixões e a escravidão
que elas impõem, ateando fogo sagrado ao desejo de liberdade e de beatitude,
perturbando mundo afora muitas cabeças. Inclusive, querido amigo, meu curto
pensar, meu fraco intuir.
Nise.
As
cartas de Nise da Silveira a Spinoza
(Primeras dos cartas de siete escritas por Nise Da Silveira)
Silveira, N. da (1995). Cartas a Spinoza. Rio de
Janeiro: Francisco Alves.
CARTA
I
Meu
caro Spinoza,
Você
é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações
fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos
filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do
saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação
filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia.
Mais
surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se
sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se,
entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”. Dedica-lhe poemas. O poema
para A Ética de Spinoza transborda de afeto: “Como eu amo este homem nobre / mais
do que posso dizer por palavras”.
E
este belo soneto de Sully Prud’homme exprime sentimentos de terna devoção:
C’était un homme
doux, de chétive santé
Qui, tout en
polissant de verres des lunettes,
Mit l’essence
divine en formules très nettes,
Si nettes, que
le monde em fut épouvanté,
Ce sage
demonstrait, avec simplicité.
Que le bien et
te mal sont d’antiques sornettes,
Et les libres
mortels d’humbles marionettes,
Dont le fil est
aux mains de la necessité.
Pieux admirateur
de la Sainte Ecriture
Il n’y voulait
pas voir un Dieu contre nature,
A quoi la
Synagogue en rage s’opposa.
Loin d’elle
polissant des verres des lunettes,
Il aidait les
savants à compter les planètes,
C’était un homme
doux Baruch de Spinoza.
[Era um homem
tão doce, de saúde frágil,
Que de tanto
polir os cristais de mil lentes,
Pôs a essência
divina numa fórmula ágil,
E o mundo
apavorado o viu como um descrente.
O sábio
demonstrou com um simples adágio
Que tanto o bem
quanto o mal são velhos dementes,
E os mortais são
fantoches que devem seu ágio
Aos fios
necessários de mãos descontentes.
Admirador devoto
da Santa Escritura,
Não poderia ver
um Deus contra a natura,
Ao qual a
sinagoga se opunha raivosa.
Longe dela,
polia os cristais de mil lentes,
E socorria os
sábios contando astros e entes.
Era um homem tão
doce, Bento de Espinosa.]*
*Trad.:
João Filho
Talvez você se
surpreenda em saber que o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, escreveu
para você um soneto:
Gosto de ver-te
grave e solitário
sob o fumo de
esquálida candeia,
nas mãos a
ferramenta de operário,
e na cabeça a
coruscante ideia.
E enquanto o
pensamento delineia
uma filosofia, o
pão diário
a tua mão a
labutar granjeia
e achas na
independência o teu salário.
Soem, lá fora
agitações e lutas
sibile o bafo
aspérrimo do inverno,
tu trabalhas, tu
pensas, e executas
sóbrio,
tranquilo, desvelado e terno
a lei comum, e
morres, e transmutas
o suado labor no
prémio eterno.
E até um mestre
budista, Maida Schiuchi, também escreveu versos para você:
Goethe foi
budista
Por quê?
Porque ele
serviu
um Buda chamada
Spinoza.
Quem não for
capaz de ler A Ética
como um sutra do
Grande Veículo,
ainda que se
diga budista
não passa de uma
toupeira.
Buda viveu há
2.500 anos.
E Spinoza, há
300.
Realmente a
verdade é uma só!
É a universidade
do Budismo.
Aquele homem
num cantinho de
sua cidade
viveu como
artesão polidor de lentes,
viveu
autenticamente a Verdade!
Não
sei de filósofo algum a quem tenham sido dedicadas poesias ou comovidas
evocações de encontros decisivos. Há, naturalmente, os eruditos, e esta é a
maioria, os conhecedores e interpretadores de sua obra, olhada de ângulos
diversos. A esses nada acontece de realmente importante. Mas há, também, outros
que você marcou no cerne do ser.
Goethe
permaneceu em reclusão durante meses para estudar a Ética e, a partir daí,
passou por um processo de transformação. “Na Ética de Spinoza encontrei
apaziguamento para minhas paixões; pareceu-me que se abria ante meus olhos uma
visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral. A imagem deste mundo é
transitória; desejaria ocupar-me somente das coisas duradouras e conseguir a
eternidade para meu espírito, de acordo com a doutrina de Spinoza”.
Deu-me
prazer a narração que faz Romain Roland do encontro com você, quando ainda
adolescente. Ele vinha sendo, como bom francês, “nourri de la moelle
cartesienne, pendant deux à trois années”… [mantido à medula cartesiana durante
dois ou três anos] Mas, continua ele, o caminho natural do espírito levou-me a
Spinoza, diretamente, instintivamente, tal um cão pelo olfato na trilha de duas
ou três palavras. E diz da intensa emoção sentida quando leu seus escritos.
Muitos anos depois, os volumes que os continham permaneceram para ele “livros
sagrados”.
E
assim, através do tempo e dos lugares, você foi fascinando grandes, pequenos, pequeníssimos.
E, correndo mundo, seu Livro maior — a Ética — chegou às minhas mãos, numa
pequena cidade do nordeste do Brasil, chamada Maceió. Parece incrível. Eu
estava vivendo um período de muito sofrimento e contradições. Logo às primeiras
páginas, fui atingida. As dez mil coisas que me inquietavam dissiparam-se
quase, enfraquecendo-se a importância que eu lhes atribuía. Outros valores
impunham-se agora. Continuei sofrendo, mas de uma maneira diferente. E desde
então, desejo intensamente aproximar-me de você, como discípula e amiga. Este é
o motivo por que lhe escrevo essas cartas.
Tenho
para mim que você vivenciou de súbito a experiência da totalidade, “a mais
importante e única de todas as experiências espirituais”.
Mas
como exprimir em palavras algo tão assombroso?
Então
você nos fala de uma substância única, cujo conceito não necessita de qualquer
outra coisa para sua formulação. E aquilo que é, ou seja, Deus, ser
absolutamente infinito, enfeixando infinidade de atributos, cada um dos quais
exprime uma essência eterna e infinita.
Todas
as coisas existentes são modos, isto é, modificações, afecções da substância, e
não podem ser concebidas sem a substância ou fora da substância, sua causa
imanente. A existência dos modos é precária. Existem ou deixam de existir,
enquanto é eterna a substância.
Os
humanos seriam modos. Mas me parece que, pelo menos a estes modos, os humanos,
você concede uma latente capacidade de diferenciação e esforça-se, através de
toda a Ética, para ajudá-los a se diferenciarem de maneira especial, reformando
o entendimento, trabalhando ideias confusas, a fim de torná-las claras,
indicando-lhes o caminho para libertarem-se da escravidão das paixões e mesmo
atingirem a beatitude. Esta arte de diferenciação, que você propõe, chega ao ponto
de admitir a possibilidade de um modo, perecível por definição, saltar, graças
a assíduo trabalho, de sua instável condição de existência para conquistar a
eternidade. Seria um verdadeiro pulo olímpico. Ouso até propor para seu livro
magnum o subtítulo: “Arte de diferenciação do modo humano”. Estarei dizendo um
absurdo?
A
concepção que você tem de Deus, causa imanente e não transitiva de todas as
coisas, confundiu muita gente. Insultos pessoais, deturpações grosseiras de
suas concepções, rótulos de panteísta, de ateu. Ateu, você, para quem “o amor
devotado a Deus deve ocupar o espírito acima de tudo” (V, XVI), amor
completamente depurado, que nada pede em troca, sequer o amor do grande amado
(V, XIX).
Quanto
a mim, repito com Novallis, que você é “um homem ébrio de Deus”.
Outros
negam-lhe originalidade. Referem influências sobre seu pensamento, partindo de
Uriel da Costa, Daniel Prado, Giordano Bruno…
Decerto,
todos sofrem a influência da época em que vivem. Seu vocabulário bem o
demonstra para desespero de seus leitores de hoje. Mas, essas influências, por
fortes que sejam, podem contribuir para modelamentos de formas e expressão.
Entretanto jamais conseguiriam provocar profundas transformações da visão do
universo, segundo aconteceu a você.
Em
compensação, outros lhe compreenderam, no todo ou em parte, admiravam e
escreveram livros e mais livros sobre a sua filosofia. Quero apenas perguntar
se você tem notícia de um filósofo do Terceiro Mundo, chamado Farias Brito. Ele
aprendeu sua ideia fundamental de maneira mais sintética: “Deus está no
universo como o universo está em Deus”. Farias Brito vê em você um pensador
isolado. Escreve: “sua filosofia apresenta-se na história do pensamento com a
mesma importância com que se apresentaria em vasto deserto uma grande montanha
de cristal dominando o alto e na qual bateriam em cheio os raios de sol”.
Agora
vou continuar, entrando num assunto difícil. Talvez tenham ocorrido, para abrir
caminho à sua grande vivência original, circunstâncias especiais de sua vida:
—
Você não aceitou, desde ainda muito jovem, os rígidos ensinamentos dos mestres
do judaísmo e foi, por isso, expulso da comunidade judaica como um maldito.
—
Suas tentativas de atividade no comércio de exportação, legado por seu pai,
fracassaram.
—
E, mais ainda, o amor pela filha de seu professor de latim trouxe-lhe amarga
decepção.
Perdoe-me
se toco em assuntos pessoais delicados. Receio aborrecer você, sempre tão
discreto. Mas se o faço é movida por um desejo de o conhecer melhor. Creio que
me encanta a imagem que você escolheu para seu sinete: uma rosa e, em torno da
flor, as palavras — Cuidado. Eu tenho espinhos. Não seriam certamente espinhos
para ferir, mas espinhos para manter à distância indiscretos que pretendessem
aproximação impertinente.
Haviam
sido cortadas todas as amarras, nenhum apego lhe retinha. Você estava livre
para receber, em todo o seu esplendor, a emergência da experiência interna da
totalidade e, a partir daí, desdobrá-la numa visão unitária do universo, que
acredito ter sido vivenciada por você, a ponto de ousar pedir-lhe permissão
para abordá-la usando conceitos e vocabulário que me são familiares.
Um
concurso de circunstâncias adversas, aceitas por você sem qualquer crispação do
Ego, criaram um vazio que permitiu o surgimento da profundidade da psique, do
arquétipo do Self — “um termo de uma parte bastante preciso para exprimir a
essência da totalidade humana e bastante impreciso, de outra parte, para
exprimir também o caráter indescritível e indeterminável da totalidade” (C. G.
Jung, 12, 10).
Ao
arquétipo do Self, no seu caráter indeterminado, você teria denominado
substância infinita, ou seja, Deus. Deus na acepção de Natura Naturans, energia
criadora e englobante do mundo na sua totalidade.
Muitos
filósofos devem ter pressentido e aspirado a este encontro com o arquétipo do
Self. Na Expérience Métaphysique, Jean Wahl diz que os grandes filósofos
intuíram mais ou menos vagamente a existência de algo para além de si próprios
e tentaram exprimir e alcançar este algo por caminhos diversos.
“Em
Spinoza, a visão intelectual do universo apresenta-se de um só golpe quase
perfeita”, escreveu Karl Jaspers.
Também
aqui aconteceu que muitos poderão ser chamados e poucos os escolhidos.
Uma
coisa me perturba e quase me causa vertigens: é a sua afirmação de que Deus
consiste de uma infinidade de atributos, dos quais o entendimento humano apenas
alcança dois — pensamento e extensão. Teremos, pois, de reconhecer as
limitações de nosso entendimento, na condição de modos da substância infinita.
Em carta a Oldenburg (XXXII), você compara o homem a um verme que vivesse no
sangue. Este verme poderia discernir os glóbulos do sangue em circulação
constante, mas não conheceria a natureza do sangue na sua totalidade.
Assim
vivemos nós numa parte do universo. Poderemos realizar pesquisas em torno de
nós e em nós mesmos, mas não alcançaremos a compreensão da natureza infinita,
pois somos finitos.
Conhecer
as limitações para então tentar superá-las, eis o belo itinerário que você nos
aponta.
Gratíssima,
mestre!
Nise.
________________________________________
CARTA
II
Meu
caro Spinoza,
A
vida em Amsterdã, depois da absurda excomunhão e de outros dissabores, devia
ter sido bastante penosa para você, apesar da acolhida que desde logo lhe
ofereceram os Colegiantes, esse curioso grupo de cristãos, que reunia
indivíduos interessados na interpretação da Bíblia, estudiosos de filosofia
cartesiana, e ainda outros, abertos a fontes neoplatônicas e a obras de
místicos como Jacob Boehme.
Foi
no círculo dos Colegiantes de Amsterdã que você encontrou ambiente para expor
suas ideias sob a forma ousada em que já se apresentavam no esboço do Breve
Tratado, fonte onde eu gosto muito de beber.
Mas
creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterdã quando você,
em 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijinsburg, centro dos Colegiantes.
Ali você estaria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial.
Às
vezes chego a imaginar-me em Rijinsburg, invisível ouvinte do círculo dos
Colegiantes, que você ali frequentava. Era um prazer vê-lo, aos 28 anos,
moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam ser semelhantes aos
de sua mãe, a portuguesa Ana Débora. Tenho quase certeza de que as primeiras
palavras que você balbuciou foram em português. E isso me comove.
Ali
estava você, no meio de homens louros ou ruivos, que o escutavam surpreendidos
e talvez mesmo perturbados. Essas minhas imaginações o acompanham até o frio
sótão, onde você habitava num quarto alugado. Parece-me vê-lo debruçado sobre
sua mesa de trabalho, iluminada por lâmpada de luz hesitante, trabalhando e
retrabalhando pensamentos e sentimentos nascidos de sua experiência direta da
unidade.
Lembrei-me
então desses versos de Baudelaire, embora fossem tranquilas as ruas de
Rijinsburg e só fosse ouvido o sopro de ventanias frígidas:
“L’émeute
tempêtant vainement à ma vitre
ne fera pas
lever mon front de mon pupitre,
car je serai
plongé dans cette volupté,
d’évoquer le
printemps avec ma volonté
de tirer un
soleil de mon coeur, et de faire
des mes pensées
brûlantes une tiède atmosphère”
[Em vão a
tempestade estremece a vidraça;
Imerso no poema
eu até acho graça
Pois cá na
escrivaninha revivo o prazer
De evocar o
Verão pelo simples querer
E produzir um
sol no meu coração. Rindo,
Minha mente febril
inventa um dia lindo.]*
*Trad.: Pontual.
Caraterística
muito simpática dos Colegiantes é nunca haverem exigido de você a adesão ao
cristianismo, ao batismo, nem que você aceitasse a encarnação do Deus infinito
num homem.
Mas
não deixa de surpreender você admitir que “Pode ser que Deus tenha impresso em
vós uma ideia clara d’Ele mesmo, de modo que, por amor, vós esqueceis o mundo e
amais os outros homens como a vós mesmos. Em todo caso, é evidente que a um
homem dotado de tal disposição repugne tudo quanto é chamado de mal e, por esta
razão, o mal não pode existir n’Ele” (Carta XXIII a Blyenbergh — Voorburg 1665
— O.C., p. 1220).
Esse
homem bem poderia ser o Cristo. E talvez algo semelhante haja acontecido a
outros raros seres humanos. Muito provavelmente a você, querido amigo.
É
inegável que a doutrina de Cristo tenha marcado seu pensamento, principalmente
na primeira etapa de suas cogitações filosóficas. Assim, na introdução do Breve
Tratado, você diz que visa a “curar aqueles que se acham doentes em seu entendimento
por meio de um espírito de doçura e paciência, segundo o exemplo do Senhor
Cristo, nosso mestre maior” (O.C., 71). E, bem mais tarde, no Tratado Teológico
Político, publicado em 1670, você escreve: “Eu não li em lugar algum que Deus
tenha aparecido ao Cristo, ou que lhe tenha falado, mas o texto ensina que Deus
se revelou aos apóstolos pela intermediação do Cristo e que Ele é a via da
salvação, ao passo que a Lei antiga havia sido transmitida por uma voz ecoando
no ar, mas não imediatamente… Por conseguinte, se Moisés falava face à face com
Deus, como um homem com seu semelhante (isto é, pela interposição de seus
corpos), o Cristo, ele próprio, comunicou-se com Deus de espírito a espírito.
Em
conclusão, nós declaramos que, à exceção do Cristo, ninguém recebeu jamais a
revelação de Deus sem o auxílio da imaginação, isto é, de palavras ou imagens
visuais” (T.T.P., O.C., 681).
Gostei
muito de ler essas suas palavras, porque sou muito amarrada ao Cristo. Peço-lhe
perdão por tê-las transcrito tão longamente numa carta a você mesmo. Mas isso
me deu prazer.
Entre
os Colegiantes de Rijinsburg, como já havia acontecido no grupo de Amsterdã,
você fez grandes amigos. Uma carta de Simon de Vries (Carta VIII) bem demonstra
o contato mantido entre os dois grupos. Além de Simon de Vries, outro amigo
delicadíssimo foi Jarig Jelles, firme até a morte. E ainda o editor Juan de
Rieuwertz, Balleing, para não citar outros. Você, que tanto amava a solidão, a
meditação, tinha o dom de fazer amizades sólidas. Insisto nisso porque é coisa
rara. Quase sempre as amizades são instáveis e deixam na gente traços de mágoa.
Pergunto-me mesmo, se, entre os mais fiéis de seus amigos, todos entendiam a
profundeza de sua filosofia. Não tenho dúvida de que sua personalidade, sua
atitude para com o outro, irradiassem algo como a força do ímã, vinda do âmago
de seu ser.
Você
polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofício, como
meio de manter a vida. Mas outros o negam. Sua subsistência modesta estava
assegurada por amigos fraternos (Vries). As lentes eram polidas a fim de serem
utilizadas em seus próprios trabalhos científicos, tal como faziam vários
sábios da época. É possível que algumas fossem vendidas, pois seriam procuradas
por sua perfeição, mas não como meio de subsistência. Aqui faço uma hipótese. O
polir lentes obedece a leis geométricas. Você as polia com prazer, usando as
próprias mãos. Divertiu-me o que você diz, em carta a Oldenburg, a propósito
das lentes polidas por Huygens que “se dedicou e se dedica inteiramente ao
polimento das lentes; em vista disso, ele construiu uma bela máquina para a
fabricação de várias lentes. Eu não sei ainda quais tenham sido os resultados,
e, com efeito, nem sequer me interesso. A experiência, em verdade, mostrou-me
suficientemente que com a mão é possível polir as lentes esféricas muito melhor
e com maior segurança do que lograria uma máquina” (Carta XXXII, Voorburg,
1665).
Você
admitiria a possibilidade de existir uma relação estreita entre o polir de
lentes, com as próprias mãos, dentro de regras geométricas, e as transformações
que fizeram do Breve Tratado, iniciado em Amsterdã — a Ética — construída sob
forma geométrica, sem cessar, polida e repolida, até 1775?
Nosso
Machado de Assis percebeu algo dessa relação quando disse num soneto, que já
citei na carta anterior: “nas mãos a ferramenta do operário / no cérebro a
coruscante ideia”.
Dando
um passo a mais, ver-se-á ficar transparente, em você próprio, relação estreita
entre pensamento e corpo (suas mãos) trabalhando, cada um em sua clave, numa
personalidade bem integrada.
Foi
no retiro de Rijinsburg que você escreveu o Tratado sobre a Reforma do
Entendimento. Desejei muito este seu livro, mas só consegui anos depois de já
ter comigo a Ética. Assim, foi uma grande alegria quando o encontrei. Nas
primeiras páginas fiquei logo comovida lendo o que você diz de si próprio, de
maneira tão discreta, mas que deixa transparecer um sofrido e profundo trabalho
interior.
Sem
maior demora, segue-se a exposição de seu método de filosofar, tão ligado à sua
maneira de viver.
Amigo,
você nem avalia a onda de lembranças que logo se ergueu dentro de mim.
Revi-me
quando ainda ginasiana. Depois de prestados meus exames de álgebra e geometria
no Liceu Alagoano (Maceió), logo no início das férias, eu estava um dia
arrumando meus livros: separei os volumes de álgebra, geometria e cadernos
correspondentes, guardei-os num armário próximo de minha pequena mesa de estudo
(era linda essa pequena mesa com seus elegantes pés volteados), e coloquei sobre
ela livros de física, química e história natural, que seriam as matérias no ano
letivo seguinte, de acordo com os programas daquela época.
Meu
pai estava perto, sentado numa cadeira de balanço. Parecia totalmente absorvido
na sua leitura.
Foi
com surpresa que o ouvi perguntar-me:
—
Você vai recolher seus livros de geometria?
—
Sim, agora terei outras matérias para estudar.
—
Lamento, porque geometria não é uma matéria como as outras. Não é apenas o
estudo das propriedades das figuras. Ensina a arte de pensar.
Meu
pai, em poucas palavras, mostrava-me uma perspectiva nova de estudo. Eu tinha
na ocasião quatorze anos de idade, mas me feriu a expressão “arte de pensar”.
Peguei
logo meu preferido tratado de geometria e coloquei-o ao lado dos livros
programados para o último ano de preparatórios, conforme se dizia naqueles
distantes tempos. Levei-o também comigo para a Bahia, onde fui fazer o curso
médico.
De
quando em vez, abria-o ao acaso e ficava seguindo linhas traçadas no espaço,
que conduziam sempre a demonstrações exatas. Assim, cedo tomei o hábito de
procurar ordenar e deduzir, embora não conseguisse chegar ao clássico “como
queríamos demonstrar” e esbarrasse tantas, tantas vezes, diante de portas
misteriosas. Nas ciências biológicas as coisas são muito complicadas.
Nessa
época eu estava longe de supor que meu pai havia me impulsionado para o segundo
gênero de conhecimento, conforme você o descreve: conhecimento dedutivo regido
pela razão, que deixa para trás o “ouvi dizer” ou as “experiências vagas” do primeiro
gênero de conhecimento.
Muito
mais tarde, quando comecei a estudar apaixonadamente sua filosofia, embora de
maneira dispersiva, verifiquei o quanto ainda mais difícil que a prática do
segundo gênero de conhecimento será a penetração para além da cadeia de
operações intelectuais dedutivas, até que se consiga atingir o terceiro gênero
de conhecimento, ou seja, a apreensão imediata da essência das coisas.
Foi
um relâmpago deste último género de conhecimento que deslumbrou Antonin Artaud,
quando ele de súbito descobriu o Ser da abelha: “j’ai vu un Être, celui de
l’abeille vivre, cela me suffitt pour toujours” [Eu vi o Ser da abelha, e isso
para mim foi definitivo].
Vivências
semelhantes já aconteceram a muitos outros: místicos, poetas, pintores, músicos
e mesmo a homens e mulheres comuns em instantes privilegiados, que parecem
eternos, mas quase sempre são fugazes.
Você
visa a transmitir a maneira de alcançar a essência das coisas com maior
estabilidade.
Para
galgar esta escalada, seu método ensina que será necessário, preliminarmente,
“uma meditação assídua e a maior firmeza de propósitos”, além de traçar uma
regra de vida e prescrever para si próprio um objetivo bem determinado (Carta
XXXVII, a J. Bauwmester).
O
pensamento deter-se-á sobre uma ideia verdadeira, pois “deve existir em nós,
como instrumento inato, uma ideia verdadeira”. Neste difícil caminhar, quanto
maior for o número de ideias verdadeiras, ou seja, das essências das coisas
existentes, compreendidas pela reflexão, mais se ampliará o espírito daquele
que pratica este método. E, sobretudo, acentua você, o método alcançará maior
perfeição quando o espírito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente
perfeito (Tratado da Reforma do Entendimento, 39). Desde o início, pois,
convirá dedicarmo-nos a chegar o mais rapidamente possível ao conhecimento
daquele Ser (49 TRE).
Não
sei se o entendo bem. Mas não consigo aceitar que você seja um extremado
racionalista, segundo se repete habitualmente.
Só
em Jaspers encontrei um justo comentário: “Spinoza comunica sua filosofia pelos
meios que a razão fornece, mas estes não esgotam seus fundamentos decisivos”
(Jaspers, op. cit., 276). Estes “fundamentos decisivos” provêm, parece-me, da
experiência da totalidade que você apreendeu intuitivamente como uma verdade
absoluta.
Perdoe-me
se comparo sua concepção da unidade original das coisas à visão do “planetário
de Deus”, vislumbrada por Carlos Pertuis. Mas Carlos era fraco. Sua
personalidade estilhaçou-se sob o impacto da visão extraordinária e acabou
internado, pelo resto da vida, num hospital psiquiátrico.
Você
suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experiência súbita, mas a estrutura
forte de sua personalidade manteve-se coesa. Mas a experiência direta era
inefável. Como falar aos homens? Seria preciso recorrer à linguagem racional.
Assim você o fez, desdobrando pensamentos, desvelando paixões e a escravidão
que elas impõem, ateando fogo sagrado ao desejo de liberdade e de beatitude,
perturbando mundo afora muitas cabeças. Inclusive, querido amigo, meu curto
pensar, meu fraco intuir.
Nise.
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